Por Arnaldo V. Carvalho
Quando joguei pela primeira vez, não me furtei a escrever
minhas primeiras impressões para os amigos, e especular sobre o futuro do jogo,
como podem ver nos fragmentos a seguir.
(…) “Engraçado é que o fator sorte existente
não me incomodou. De certa forma porque o tema suscita ao inesperado encontrado
tantas vezes pela Enterprise, mas também porque as variáveis da sorte na
verdade são probabilidades calculáveis”.
”…aprende-se rápido o
como jogar e suas manhas. Demorada é a MEMORIZAÇÃO dos efeitos e poderes das
muitas cartas. (…) A vantagem é que, para quem curte o tema, o processo de memorizar
é bem agradável: vai-se revendo os
personagens da série, e se pode perceber que o primoroso trabalho foi feito na combinação
dos efeitos de carta com a temática é parte do fascínio do próprio jogo. Aprender
Star Treck BDG é em si uma diversão”.
“Éramos quatro a mesa;
acredito que o jogo cheio como foi deve ser o ideal, impedindo "clima de
perseguição", tornando as estratégias de composição dos baralhos mais
densa - e mais arriscada!”
“… me impressionei com o
jogo ter tantas cartas únicas. O esforço de representar tantos personagens e ao
mesmo tempo estes nunca se repetirem foi FENOMENAL! Fazia tempo que um jogo não
me trazia essa ‘alegria da originalidade’”.
“Houve dúvidas nas regras, fruto talvez dessa
extrema diversidade de efeitos provocados pelas cartas. E a arte peca no
quesito tamanho das informações nas cartas. Realmente é tudo bem espremido em uma
carta ‘standard’. Mas acho que foi algo "bancado" pelos designers:
eles apostaram que a imagem das cartas contagiaria mais os jogadores do que os
textos e estatísticas. Olhar a "ponte de comando" do adversário e ver
que ele está com um Sulu do mundo paralelo, um Scott e um ou dois outros poderosos
personagens da série é realmente terrificante!”
Após alguns meses jogando, acredito que essa será uma
análise madura e pronta para oferecer ao leitor uma radiografia justa de Star
Trek: TOS BDG. Durante esse tempo, pude confirmar algumas de minhas percepções,
mas novos aspectos surgiram. Tornou-se
evidente a diversão que o jogo é capaz de proporcionar em curto e longo prazo.
Suas limitações passaram a incomodar cada vez mais, embora alguns de seus
trunfos ainda trouxeram bom gosto ao jogo.
O boardgame americano, publicado em 2012 e desenhado por Alex
Bykov, é seqüência de uma aposta franca no sucesso da franquia Star Trek para a
alavancagem das vendas, e foi produzido após Star Trek Building Deck: The Next
Generation Premiere Edition, e é compatível com o mesmo, de modo que os dois
jogos são “misturáveis”.
Descrição rápida da
dinâmica de jogo
Nesse Building Deck Game, todos os jogadores começam todos
com uma nave com oito pontos de vida, e um baralho inicial equivalente, com dez
cartas. Elas são embaralhadas com o jogador comprando cinco de cada vez. No
centro da mesa ficam abertas nove cartas do deck que alimentará os baralhos dos
jogadores. Carta comprada, outra é colocada em seu lugar. Os jogadores em sua
vez baixam cartas que possibilitam compras e somam seus poderes e efeitos para
tentar influenciar o jogo do adversário ou realizar missões, que é o modo como
se conquistam os pontos que levarão o participante à vitória.
A vitória
As missões estão representadas em outro baralho, e podem
oferecer em sua realização 25, 50, 75 ou mesmo 100 pontos, além de recompensas
diversas. Para cumpri-las, o jogador deve possuir nas cartas que baixou
anteriormente, os requisitos específicos pedidos pela carta de missão que ele
abrirá se achar que está “pronto” para tanto. Neste deck de missões, no
entanto, o jogador poderá se deparar ainda com cartas de eventos e de batalha,
que igualmente valem um número de pontos. Nas batalhas os demais jogadores
tomam parte e baixam suas possibilidades na mesa, disputando uns com os outros
a partir das várias estatísticas e dos requisitos que a batalha indica.
Oferecendo um elemento estratégico ao jogo, cada oponente recebe no início do
jogo 2 missões básicas (também chamadas “draft”), que poderão ser reveladas e
garantir pontos e recompensas ao jogador.
A saúde da nave
Os participantes precisam administrar os pontos de vida de
sua nave, que podem ser perdidos por meio de variada situações, desde o efeito
de uma carta adversária ao tiro oriundo de uma nave adversária em batalha. Pontos
de vida podem ser repostos, mas utilizando o mesmo sistema de pontos de cartas
para o deck. Ou seja, a saúde da nave é um condicionante fundamental. A
destruição acarreta da perda da mão, da vez (se for o caso) e a punição de
receber uma carta básica muito fraca, que “polui” o deck do jogador.
Cenário Extra
A caixa vem com um “cenário extra”, que basicamente é um
deck diferenciado de missões que a substituir parte do deck básico e as cartas
de “infecção”. As missões do “Infection” são de outra natureza, e os jogadores
podem considerar o cumprimento delas mais difícil. No cenário Infection não há
batalhas. Em compensação, os jogadores podem contrair “infecções” (recebendo
cartas de infecção), sofrendo conseqüências negativas de sua presença no jogo.
A dinâmica bastante simplificada é essa. Mas entre os
sabores do jogo estão os pequenos detalhes que surgem entre as regras e não
caberia detalhar agora. Na maior parte das vezes são pequenas mecânicas que
adicionam elementos táticos e estratégicos ao jogo, e equilibram a relação
inteligência/sorte. Entre eles, vale mencionar . A liberdade incomum com que se
pode realizar os diversos tipos de ação; A maneira com que se obtém compras;
Curiosos efeitos de algumas cartas; A possibilidade de excluir uma carta do
deck ao abrir mão da vez; a ação que permite ao jogador modificar a Starbase;
etc.
Comentários e feeling geral
Bem meus amigos, Star Trek: TOS BDG é uma bela brincadeira,
com a qual pode-se passar muitas noites com os amigos. É um jogo que se resolve
em cerca de meia hora por jogador, embora possa levar um pouco mais para os não
familiarizados com os efeitos das cartas.
Surpreendentemente o jogo embora altamente temático não
depende que seus participantes sejam “trekkers”. Na realidade, em nosso grupo
dois – eu incluso – pouco conheciam da série e mesmo assim gostaram bastante.
Inclusive o efeito foi o contrário. A admiração à medida em que ia conhecendo
as cartas, os efeitos atribuídos aos personagens, os títulos das missões e
pequenas citações artisticamente colocadas acabaram por me despertar interesse
na série, e a partir daí que passei a assistir os episódios. Acabei gostando
bastante. Assim ao contrário do que os trekkies com quem joguei predisseram,
esse jogo não é bom só para os fãs da série.
Parte de seus méritos reside na grande quantidade de cartas
com características únicas. Só de personagens temos 50, que se somam a outras
30 cartas a representar aparatos tecnológicos diversos e a 3 personagens
básicos (estes sim em grande quantidade) – os sempre presentes figurantes da
série.
Dessa forma, o baralho de um jogador torna-se, sempre exclusivo, e a
disputa pelas cartas tende a ser feroz. Há um aspecto viciante no aqui,
relacionada a capacidade de se montar combos extraordinários, dignos de
aplausos dos oponentes. Há um gostoso em podermos estar sempre inventando um
jeito de seqüenciar o uso das cartas. Diferente de jogos mais “sistemáticos”
como o
Dominion, as possibilidades de montagem com tantas individualidades
possibilitam que a cada jogo surjam associações novas e jogadas fantásticas.
Com tantas opções e possibilidades, o jogo pode causar a
sensação, como aliás acontece de forma freqüente entre os “deck builders”, de que
o jogo é excessivamente aleatório e dependente de sorte.
Porém, um exame mais apurado e a maior
experiência de jogo demonstra que, embora o elemento sorte participe com força,
ele está incrivelmente balanceado em acordo com a temática, e não ultrapassa o
mérito das ações táticas e estratégicas do jogo.
Um último ponto positivo a destacar é a possibilidade de
interação. Cada vez menos os jogos tem a interatividade como ponto forte, e
isso faz falta para muita gente. Mas isso é algo que Star Trek: TOS DBG
definitivamente consegue superar, através de certos efeitos encontrados nas
cartas, das batalhas, e da facilidade de se monitorar – ao menos parcialmente –
o baralho e o jogo do outro, modificando inclusive o ambiente que o próximo
jogador encontrará para jogar.
O tricorder do jogo:
progressão de sensações e rejogabilidade.
As primeiras sensações ao iniciar o aprendizado de Star
Trek: TOS DBG é a de que estamos de fato entrando num jogo trekkie. A toda hora
os jogadores pedem uns aos outros permissão para pegar uma e outra das nove
cartas da Starbase afim de conhecerem seus efeitos e preverem suas compras. Mas, para além do aspecto mecânico, há um
vislumbre geral com o tema da carta, e o que ela representa. Há uma demora na
percepção de que o baralho é bom o suficiente para se arriscar por missões, e
isso pode tornar o jogo bastante mais lento para “começar” de fato. O novato
também tende a ter menos noção do problema que as cartas “Ensign”, em geral
recebidas como punição, podem representar – aqui cabe uma crítica, o jogo
poderia ter a possibilidade de criação de boas estratégias com cartas
aparentemente fracas, o que não acontece. Se houver batalhas estas
possivelmente serão execradas. São de resolução lenta, contribuem pouco na
dinâmica do jogo, fazem a mão já armadinha para entrar em jogo ser perdida. Numa
primeira experiência pode-se prever que o gamer-padrão, acostumado com a ordem
imposta nos tile-placement, dirá que o
jogo é mesmo caótico e talvez aleatório. Já os jogadores acostumados com
ameritrash, mesmo que percebam assim farão disso um motivo para elogios! Com
alguma sorte surgirão interessantes combos que desde aqui começarão a seduzir
os jogadores.
Da terceira para a quarta partida os jogadores já estarão
familiarizados com um número significativo de cartas, bem como os tipos de
cartas missão, e o uso da mecânica geral. Por muitas outras partidas eles ainda
precisarão reler textos em certas cartas. Mas é mais ou menos a partir daqui
que as batalhas finalmente começam a revelar-se como elemento de equilíbrio,
manutenção do tema, e mesmo diversão. Elas ainda irão se tornar mais rápidas e
decididas, é claro. O jogo toma seu tempo normal aproximado por jogador. Os
jogadores terão dificuldade de se contentar com apenas uma partida.
Pode é
claro surgir um ou outro no grupo que se destaquem por perceber algum aspecto
novo, em relação por exemplo a maneira de compor o deck – mais enxuta, com esta
ou aquela carta se combinando, etc.
A partir da sétima partida cartas antes renegadas pelo grupo
“não sei porque existem”; “jamais usaremos”;
começarão a ser exploradas de outra maneira. Surgirão combos antes
impensados. Se o grupo ainda não experimentou, agora vai querer experimentar o
Infections. Se já experimentou e for ousado, possivelmente vai querer misturar
os dois cenários. A expansão “tribbles” tentará ser encomendada. E entre os
“game moders”, a agitação por individualizar naves e criar regras mais
avançadas será nítida.
Com o grupo experiente, jogar Star Trek DBG começa a se
parecer com jogar canastra ou similar. Não é um filler, mas também não é um
estratégico. É daqueles jogos gostosos, que pode-se jogar a vida inteira num
encontro mensal com os mesmos velhos amigos, e na verdade é mais pretexto para
estar junto do que passa tempo frita-miolos. Sob esse sentido, acho que Bykov
reinventou o famoso jogo de compadre.
E é por isso mesmo que, por mais divertido que seja, um dia
o grupo gamer decide abandonar para sempre o jogo, seguir com sua vida de
testar lançamentos, e jogar poucas vezes uma quantidade interminável de jogos
maravilhosos.
Número ideal de
jogadores
Star Trek: TOS DBG foi pensado para 2-4 jogadores. Mas há
pouca chance do jogo funcionar bem com duas pessoas. Embora pareça mais
estratégico, já que não há muita gente que possa mexer com o panorama do jogo –
o que permite alguma previsão – o desequilíbrio em geral acontece quando se
completa uma missão. Podem vir recompensas que trazem vantagem grande, e assim
o jogador “mais rápido” dispara “para sempre” numa contagem de pontos e
montagem de mão. Com quatro teremos o equilíbrio perfeito do “gangue contra o
líder”. O jogo passa a ser tático. É mais comum todos os jogadores chegarem no
fim do jogo com muitos pontos. Com três esse efeito é amortizado, mas resolve
uma certa lentidão que é comum no jogo com quatro pessoas.
Problemas na produção
comprometem
O que a excelente caixa do jogo oferece em qualidade e
beleza, as divisórias internas, feitas em papelão cru, enfraquecem o impacto de
abrir o jogo pela primeira vez. As cartas, do tipo encerado, são frágeis e dependem
de sleeves para sobreviver.
O manual é um festival de erros, e certamente afastará
jogadores que se deparam com tamanha inconsistência. Dá para ver que ele foi
pensado como um manual predominantemente visual, um manual para pessoas do
século XXI. . Mas um jogo com tantos detalhes ainda precisa de mais texto, e
que esses sejam mais bem ordenados e detalhados. Há erros graves nas instruções
visuais do jogo, como a carta de missão disposta entre as cartas da Starbase; Já
nos textos, o uso de um efeito como exemplo que não poderia ser encontrado no
jogo – infelizmente, parece-me possível que parte das regras tenham sido
adaptadas a partir do manual do Star Trek: TNG BDG. O manual realmente é um
ponto tão fraco do jogo que nem um F.A.Q. lançado posteriormente foi suficiente
para tornar as regras do jogo claras para os interessados.
A arte das cartas é bela, embora um pouco confusa. As imagens
escolhidas, contudo, são fotos das mais comuns que se encontram em
circulação pela Internet, o que oferece uma ideia de que a pesquisa e
investimento em algo mais exclusivo ou trabalhado inexistiu. O texto dos
efeitos é muito pequeno e falha na legibilidade. O valor de suas
estatísticas poderia ser igualmente mais bem feito. Mas o pior é a
redação, que permite uma série de ambigüidades e é responsável pelo
maior número de dúvidas em relação aos efeitos das cartas. Como se não
bastasse, a arte contém erros que comprometem a dinâmica de jogo. Por
exemplo, na “Robert Fox” mais um importante erro: segundo confirmou o
designer Bykov em fórum da BGG, a carta deveria pertencer a categoria
“Personagem – Federação”, diferente do que está lá.
Jamais pude encontrar uma reunião tão grande de falhas de produção, e
garanto que muitos jogadores se afastaram de Star Trek DBG em função
disso. Os reviewers também não podiam ir longe. Alguns, de peso como Tom
Vasel simplesmente não captaram o jogo em uma ou duas experiências, e
sem dúvida essa má impressão inicial que o material estudado lhes
oferece contribuíram para o jogo ter sido bastante criticado. Realmente
gostaria de saber se houve pressa para aproveitar as vendas em uma data
como Natal, ou alguma efeméride ligada a franquia Star Trek, ou ainda se
os demais produtos da Bandai Cardgames sofrem desse mesmo tipo de
displicência geral.
Palavras finais
Quem gosta de liberdade, variação, poderes exclusivos por
jogador e deck building vai adorar esse jogo. Que gosta de jogos mais
estruturados tem chance de curtir ou não. Os trekkies vão amar a bem feita
homenagem à série e as interessantes correlações carta-tema, mas poderão odiar
ver seus adversários reunirem Khan, Uhura e um Klingom para cumprir uma missão
no espaço.
O incontestável
talvez seja de que Star Trek: The Original Series Deck Building Game não é um
jogo qualquer, e dispara opiniões e emoções das mais diversas – bem ao espírito
das aventuras da Enterprise e sua tripulação tão cheia de personalidade.
Os que se aventurarem por esse jogo, certamente, irão onde
nenhum homem jamais esteve.
(*pouca/fraca; ** média; *** muita/forte)
SORTE **
ESTRATÉGIA ** (reduz quanto maior o número de jogadores)
TÁTICA **
PESO **
REJOGABILIDADE ***
SINTONIA TEMA x MECÂNICA ***
MANUAL *
ARTE **
QUALIDADE DA CAIXA E COMPONENTES **
***
Arnaldo V. Carvalho é terapeuta, adora jogos e com esse texto inicia-se pelo mundo desafiador das resenhas.
Ótimo, grande resenha!
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