2 de mai. de 2013

Star Trek: TOS Building Deck Game


Por Arnaldo V. Carvalho

Quando joguei pela primeira vez, não me furtei a escrever minhas primeiras impressões para os amigos, e especular sobre o futuro do jogo, como podem ver nos fragmentos a seguir.

 (…) “Engraçado é que o fator sorte existente não me incomodou. De certa forma porque o tema suscita ao inesperado encontrado tantas vezes pela Enterprise, mas também porque as variáveis da sorte na verdade são probabilidades calculáveis”.

”…aprende-se rápido o como jogar e suas manhas. Demorada é a MEMORIZAÇÃO dos efeitos e poderes das muitas cartas. (…) A vantagem é que, para quem curte o tema, o processo de memorizar é bem  agradável: vai-se revendo os personagens da série, e se pode perceber que o primoroso trabalho foi feito na combinação dos efeitos de carta com a temática é parte do fascínio do próprio jogo. Aprender Star Treck BDG é em si uma diversão”.

“Éramos quatro a mesa; acredito que o jogo cheio como foi deve ser o ideal, impedindo "clima de perseguição", tornando as estratégias de composição dos baralhos mais densa - e mais arriscada!”
“… me impressionei com o jogo ter tantas cartas únicas. O esforço de representar tantos personagens e ao mesmo tempo estes nunca se repetirem foi FENOMENAL! Fazia tempo que um jogo não me trazia essa ‘alegria da originalidade’”.

 “Houve dúvidas nas regras, fruto talvez dessa extrema diversidade de efeitos provocados pelas cartas. E a arte peca no quesito tamanho das informações nas cartas. Realmente é tudo bem espremido em uma carta ‘standard’. Mas acho que foi algo "bancado" pelos designers: eles apostaram que a imagem das cartas contagiaria mais os jogadores do que os textos e estatísticas. Olhar a "ponte de comando" do adversário e ver que ele está com um Sulu do mundo paralelo, um Scott e um ou dois outros poderosos personagens da série é realmente terrificante!”

Após alguns meses jogando, acredito que essa será uma análise madura e pronta para oferecer ao leitor uma radiografia justa de Star Trek: TOS BDG. Durante esse tempo, pude confirmar algumas de minhas percepções, mas novos aspectos surgiram.  Tornou-se evidente a diversão que o jogo é capaz de proporcionar em curto e longo prazo. Suas limitações passaram a incomodar cada vez mais, embora alguns de seus trunfos ainda trouxeram bom gosto ao jogo.

O boardgame americano, publicado em 2012 e desenhado por Alex Bykov, é seqüência de uma aposta franca no sucesso da franquia Star Trek para a alavancagem das vendas, e foi produzido após Star Trek Building Deck: The Next Generation Premiere Edition, e é compatível com o mesmo, de modo que os dois jogos são “misturáveis”.



Descrição rápida da dinâmica de jogo

Nesse Building Deck Game, todos os jogadores começam todos com uma nave com oito pontos de vida, e um baralho inicial equivalente, com dez cartas. Elas são embaralhadas com o jogador comprando cinco de cada vez. No centro da mesa ficam abertas nove cartas do deck que alimentará os baralhos dos jogadores. Carta comprada, outra é colocada em seu lugar. Os jogadores em sua vez baixam cartas que possibilitam compras e somam seus poderes e efeitos para tentar influenciar o jogo do adversário ou realizar missões, que é o modo como se conquistam os pontos que levarão o participante à vitória.



A vitória

As missões estão representadas em outro baralho, e podem oferecer em sua realização 25, 50, 75 ou mesmo 100 pontos, além de recompensas diversas. Para cumpri-las, o jogador deve possuir nas cartas que baixou anteriormente, os requisitos específicos pedidos pela carta de missão que ele abrirá se achar que está “pronto” para tanto. Neste deck de missões, no entanto, o jogador poderá se deparar ainda com cartas de eventos e de batalha, que igualmente valem um número de pontos. Nas batalhas os demais jogadores tomam parte e baixam suas possibilidades na mesa, disputando uns com os outros a partir das várias estatísticas e dos requisitos que a batalha indica. Oferecendo um elemento estratégico ao jogo, cada oponente recebe no início do jogo 2 missões básicas (também chamadas “draft”), que poderão ser reveladas e garantir pontos e recompensas ao jogador.


A saúde da nave

Os participantes precisam administrar os pontos de vida de sua nave, que podem ser perdidos por meio de variada situações, desde o efeito de uma carta adversária ao tiro oriundo de uma nave adversária em batalha. Pontos de vida podem ser repostos, mas utilizando o mesmo sistema de pontos de cartas para o deck. Ou seja, a saúde da nave é um condicionante fundamental. A destruição acarreta da perda da mão, da vez (se for o caso) e a punição de receber uma carta básica muito fraca, que “polui” o deck do jogador.



Cenário Extra

A caixa vem com um “cenário extra”, que basicamente é um deck diferenciado de missões que a substituir parte do deck básico e as cartas de “infecção”. As missões do “Infection” são de outra natureza, e os jogadores podem considerar o cumprimento delas mais difícil. No cenário Infection não há batalhas. Em compensação, os jogadores podem contrair “infecções” (recebendo cartas de infecção), sofrendo conseqüências negativas de sua presença no jogo.
A dinâmica bastante simplificada é essa. Mas entre os sabores do jogo estão os pequenos detalhes que surgem entre as regras e não caberia detalhar agora. Na maior parte das vezes são pequenas mecânicas que adicionam elementos táticos e estratégicos ao jogo, e equilibram a relação inteligência/sorte. Entre eles, vale mencionar . A liberdade incomum com que se pode realizar os diversos tipos de ação; A maneira com que se obtém compras; Curiosos efeitos de algumas cartas; A possibilidade de excluir uma carta do deck ao abrir mão da vez; a ação que permite ao jogador modificar a Starbase; etc.


Comentários e feeling geral

Bem meus amigos, Star Trek: TOS BDG é uma bela brincadeira, com a qual pode-se passar muitas noites com os amigos. É um jogo que se resolve em cerca de meia hora por jogador, embora possa levar um pouco mais para os não familiarizados com os efeitos das cartas.

Surpreendentemente o jogo embora altamente temático não depende que seus participantes sejam “trekkers”. Na realidade, em nosso grupo dois – eu incluso – pouco conheciam da série e mesmo assim gostaram bastante. Inclusive o efeito foi o contrário. A admiração à medida em que ia conhecendo as cartas, os efeitos atribuídos aos personagens, os títulos das missões e pequenas citações artisticamente colocadas acabaram por me despertar interesse na série, e a partir daí que passei a assistir os episódios. Acabei gostando bastante. Assim ao contrário do que os trekkies com quem joguei predisseram, esse jogo não é bom só para os fãs da série.

Parte de seus méritos reside na grande quantidade de cartas com características únicas. Só de personagens temos 50, que se somam a outras 30 cartas a representar aparatos tecnológicos diversos e a 3 personagens básicos (estes sim em grande quantidade) – os sempre presentes figurantes da série. 

Dessa forma, o baralho de um jogador torna-se, sempre exclusivo, e a disputa pelas cartas tende a ser feroz. Há um aspecto viciante no aqui, relacionada a capacidade de se montar combos extraordinários, dignos de aplausos dos oponentes. Há um gostoso em podermos estar sempre inventando um jeito de seqüenciar o uso das cartas. Diferente de jogos mais “sistemáticos” como o 
Dominion, as possibilidades de montagem com tantas individualidades possibilitam que a cada jogo surjam associações novas e jogadas fantásticas.

Com tantas opções e possibilidades, o jogo pode causar a sensação, como aliás acontece de forma freqüente entre os “deck builders”, de que o jogo é excessivamente aleatório e dependente de sorte.  
 Porém, um exame mais apurado e a maior experiência de jogo demonstra que, embora o elemento sorte participe com força, ele está incrivelmente balanceado em acordo com a temática, e não ultrapassa o mérito das ações táticas e estratégicas do jogo.

Um último ponto positivo a destacar é a possibilidade de interação. Cada vez menos os jogos tem a interatividade como ponto forte, e isso faz falta para muita gente. Mas isso é algo que Star Trek: TOS DBG definitivamente consegue superar, através de certos efeitos encontrados nas cartas, das batalhas, e da facilidade de se monitorar – ao menos parcialmente – o baralho e o jogo do outro, modificando inclusive o ambiente que o próximo jogador encontrará para jogar.



O tricorder do jogo: progressão de sensações e rejogabilidade.

As primeiras sensações ao iniciar o aprendizado de Star Trek: TOS DBG é a de que estamos de fato entrando num jogo trekkie. A toda hora os jogadores pedem uns aos outros permissão para pegar uma e outra das nove cartas da Starbase afim de conhecerem seus efeitos e preverem suas compras.  Mas, para além do aspecto mecânico, há um vislumbre geral com o tema da carta, e o que ela representa. Há uma demora na percepção de que o baralho é bom o suficiente para se arriscar por missões, e isso pode tornar o jogo bastante mais lento para “começar” de fato. O novato também tende a ter menos noção do problema que as cartas “Ensign”, em geral recebidas como punição, podem representar – aqui cabe uma crítica, o jogo poderia ter a possibilidade de criação de boas estratégias com cartas aparentemente fracas, o que não acontece. Se houver batalhas estas possivelmente serão execradas. São de resolução lenta, contribuem pouco na dinâmica do jogo, fazem a mão já armadinha para entrar em jogo ser perdida. Numa primeira experiência pode-se prever que o gamer-padrão, acostumado com a ordem imposta nos tile-placement,  dirá que o jogo é mesmo caótico e talvez aleatório. Já os jogadores acostumados com ameritrash, mesmo que percebam assim farão disso um motivo para elogios! Com alguma sorte surgirão interessantes combos que desde aqui começarão a seduzir os jogadores.

Da terceira para a quarta partida os jogadores já estarão familiarizados com um número significativo de cartas, bem como os tipos de cartas missão, e o uso da mecânica geral. Por muitas outras partidas eles ainda precisarão reler textos em certas cartas. Mas é mais ou menos a partir daqui que as batalhas finalmente começam a revelar-se como elemento de equilíbrio, manutenção do tema, e mesmo diversão. Elas ainda irão se tornar mais rápidas e decididas, é claro. O jogo toma seu tempo normal aproximado por jogador. Os jogadores terão dificuldade de se contentar com apenas uma partida. 

Pode é claro surgir um ou outro no grupo que se destaquem por perceber algum aspecto novo, em relação por exemplo a maneira de compor o deck – mais enxuta, com esta ou aquela carta se combinando, etc.  

A partir da sétima partida cartas antes renegadas pelo grupo “não sei porque existem”; “jamais usaremos”;  começarão a ser exploradas de outra maneira. Surgirão combos antes impensados. Se o grupo ainda não experimentou, agora vai querer experimentar o Infections. Se já experimentou e for ousado, possivelmente vai querer misturar os dois cenários. A expansão “tribbles” tentará ser encomendada. E entre os “game moders”, a agitação por individualizar naves e criar regras mais avançadas será nítida.

Com o grupo experiente, jogar Star Trek DBG começa a se parecer com jogar canastra ou similar. Não é um filler, mas também não é um estratégico. É daqueles jogos gostosos, que pode-se jogar a vida inteira num encontro mensal com os mesmos velhos amigos, e na verdade é mais pretexto para estar junto do que passa tempo frita-miolos. Sob esse sentido, acho que Bykov reinventou o famoso jogo de compadre.

E é por isso mesmo que, por mais divertido que seja, um dia o grupo gamer decide abandonar para sempre o jogo, seguir com sua vida de testar lançamentos, e jogar poucas vezes uma quantidade interminável de jogos maravilhosos.
Um dia, quem sabe alguns desse mesmo grupo se perguntarão: “como foi que conseguimos jogar tantas vezes?”, e a indagação soará com um misto de deboche, saudade enrustida e medo de colocar o jogo na mesa e começar tudo de novo. J


Número ideal de jogadores

Star Trek: TOS DBG foi pensado para 2-4 jogadores. Mas há pouca chance do jogo funcionar bem com duas pessoas. Embora pareça mais estratégico, já que não há muita gente que possa mexer com o panorama do jogo – o que permite alguma previsão – o desequilíbrio em geral acontece quando se completa uma missão. Podem vir recompensas que trazem vantagem grande, e assim o jogador “mais rápido” dispara “para sempre” numa contagem de pontos e montagem de mão. Com quatro teremos o equilíbrio perfeito do “gangue contra o líder”. O jogo passa a ser tático. É mais comum todos os jogadores chegarem no fim do jogo com muitos pontos. Com três esse efeito é amortizado, mas resolve uma certa lentidão que é comum no jogo com quatro pessoas.


Problemas na produção comprometem

O que a excelente caixa do jogo oferece em qualidade e beleza, as divisórias internas, feitas em papelão cru, enfraquecem o impacto de abrir o jogo pela primeira vez. As cartas, do tipo encerado, são frágeis e dependem de sleeves para sobreviver.

O manual é um festival de erros, e certamente afastará jogadores que se deparam com tamanha inconsistência. Dá para ver que ele foi pensado como um manual predominantemente visual, um manual para pessoas do século XXI. . Mas um jogo com tantos detalhes ainda precisa de mais texto, e que esses sejam mais bem ordenados e detalhados. Há erros graves nas instruções visuais do jogo, como a carta de missão disposta entre as cartas da Starbase; Já nos textos, o uso de um efeito como exemplo que não poderia ser encontrado no jogo – infelizmente, parece-me possível que parte das regras tenham sido adaptadas a partir do manual do Star Trek: TNG BDG. O manual realmente é um ponto tão fraco do jogo que nem um F.A.Q. lançado posteriormente foi suficiente para tornar as regras do jogo claras para os interessados.

A arte das cartas é bela, embora um pouco confusa. As imagens escolhidas, contudo, são fotos das mais comuns que se encontram em circulação pela Internet, o que oferece uma ideia de que a pesquisa e investimento em algo mais exclusivo ou trabalhado inexistiu. O texto dos efeitos é muito pequeno e falha na legibilidade. O valor de suas estatísticas poderia ser igualmente mais bem feito. Mas o pior é a redação, que permite uma série de ambigüidades e é responsável pelo maior número de dúvidas em relação aos efeitos das cartas. Como se não bastasse, a arte contém erros que comprometem a dinâmica de jogo. Por exemplo, na “Robert Fox” mais um importante erro: segundo confirmou o designer Bykov em fórum da BGG, a carta deveria pertencer a categoria “Personagem – Federação”, diferente do que está lá.

Jamais pude encontrar uma reunião tão grande de falhas de produção, e garanto que muitos jogadores se afastaram de Star Trek DBG em função disso. Os reviewers também não podiam ir longe. Alguns, de peso como Tom Vasel simplesmente não captaram o jogo em uma ou duas experiências, e sem dúvida essa má impressão inicial que o material estudado lhes oferece contribuíram para o jogo ter sido bastante criticado. Realmente gostaria de saber se houve pressa para aproveitar as vendas em uma data como Natal, ou alguma efeméride ligada a franquia Star Trek, ou ainda se os demais produtos da Bandai Cardgames sofrem desse mesmo tipo de displicência geral.

Palavras finais

Quem gosta de liberdade, variação, poderes exclusivos por jogador e deck building vai adorar esse jogo. Que gosta de jogos mais estruturados tem chance de curtir ou não. Os trekkies vão amar a bem feita homenagem à série e as interessantes correlações carta-tema, mas poderão odiar ver seus adversários reunirem Khan, Uhura e um Klingom para cumprir uma missão no espaço.

 O incontestável talvez seja de que Star Trek: The Original Series Deck Building Game não é um jogo qualquer, e dispara opiniões e emoções das mais diversas – bem ao espírito das aventuras da Enterprise e sua tripulação tão cheia de personalidade.

Os que se aventurarem por esse jogo, certamente, irão onde nenhum homem jamais esteve.


NOTAS GERAIS:
(*pouca/fraca; ** média; *** muita/forte)

SORTE **
ESTRATÉGIA ** (reduz quanto maior o número de jogadores)
TÁTICA **
PESO **
REJOGABILIDADE ***
SINTONIA TEMA x MECÂNICA ***
MANUAL *
ARTE **
QUALIDADE DA CAIXA E COMPONENTES **


***
Arnaldo V. Carvalho é terapeuta, adora jogos e com esse texto inicia-se pelo mundo desafiador das resenhas.

Um comentário: